VIDA E OBRA Pesquisa de Roberto Fortes
Muito pouco se escreveu sobre o maior vulto feminino do parnasianismo brasileiro. Num universo inteiramente dominado por poetas do chamado sexo forte, Francisca Júlia provou que mulher também sabia fazer poesia de qualidade. Como poucos, criou versos perfeitos e em nada ficou a dever à chamada “trindade parnasiana” formada por Olavo Bilac, Raimundo Correa e Alberto de Oliveira, que acabaram sendo seus admiradores e principais incentivadores.
Desde a infância, Francisca Júlia já demonstrava pendor para a poesia. O ambiente familiar a isso contribuía: o pai, Miguel Luso da Silva, era advogado provisionado, amigo particular dos livros; a mãe, Cecília Isabel da Silva, professora na escola de Xiririca (hoje Eldorado), no Vale do Ribeira, Estado de São Paulo).
Foi nessa aprazível cidade às margens do Rio Ribeira de Iguape que, a 31 de agosto de 1871, nasceu a poetisa Francisca Júlia da Silva. O ano de seu nascimento é um tanto contraditório: alguns citam 1874, outros 1875. De acordo com o irmão de Francisca, o também escritor Júlio César da Silva, a quem devemos dar crédito, o ano correto é mesmo 1871.
Transferindo-se com os pais para São Paulo, Francisca Júlia logo passou a colaborar com os jornais mais importantes da época. Sua estréia deu-se no jornal O Estado de S. Paulo, onde publicou seus primeiros sonetos. A partir de então, começou a colaborar assiduamente para o Correio Paulistano e Diário Popular. Colaborou também para jornais do Rio de Janeiro, com destaque para as revistas O Álbum, de Arthur Azevedo, e, especialmente, A Semana.
Em 1895, apareceria seu primeiro livro, Mármores, reunindo sonetos publicados n´A Semana de 1893 até aquele ano, custeado pelo editor Horácio Belfort Sabino. Prefaciado por João Ribeiro, o livro causou sensação nas rodas culturais de São Paulo e Rio de Janeiro. Olavo Bilac, numa crônica emocionada, destacou: “Em Francisca Júlia surpreendeu-me o respeito pela língua portuguesa, não que ela transporte para a sua estrofe brasileira a dura construção clássica: mas a língua doce de Camões, trabalhada pela pena dessa meridional, que traz para a arte escrita todas as suas delicadezas de mulher, toda a sua faceirice de moça, nada perde da sua pureza fidalga de linhas. O português de Francisca Júlia é o mesmo antigo português, remoçado por um banho maravilhoso de novidade e frescura”.
Wenceslau Queiroz descreve Francisca Júlia como uma jovem de grande beleza, por meio dessas palavras: “era branca, muito branca, fria, muito fria, de olhos negros e límpidos à flor do rosto; lábios rosados, tez e fronte de alvura acetinada, como as camélias. Rosto oval , cabelos negros, estatura mediana. Mãos brancas, nervosas, finas e delicadas”. Essa é a cálida visão de um poeta sensível poetizando sobre uma mulher que foi única.
Mas os poemas dela nos dizem que por trás dessa aparente fragilidade, quase etérea, também viveu uma mulher doce e forte, suave e decidida, recatada mas vanguardista...
A Semana era uma das revistas mais conceituadas que então se editava na Capital Federal. Dirigida por Valentim Magalhães, tinha como redatores ilustres escritores da época: João Ribeiro, Araripe Júnior e Lúcio de Mendonça. A estréia de Francisca Júlia na revista provocou grande alvoroço: os redatores não acreditavam que uma mulher pudesse escrever versos tão perfeitos. Não foi sem razão que João Ribeiro exclamou: “Isto não é verso de mulher! Deve ser uma brincadeira do Raimundo Correa!...”
Encantado com esse talento literário que emergia, João Ribeiro prefaciaria o livro Mármores. Ombreando-a à trindade parnasiana, Ribeiro escreveu: “Nem aqui, nem no sul nem no norte, onde agora floresce uma escola literária, encontro um nome que se possa opor ao de Francisca Júlia. Todos lhe são positivamente inferiores no estro, na composição e fatura do verso, nenhum possui em tal grau o talento de reproduzir as belezas clássicas com essa fria severidade de forma e de epítetos que Heredia e Leconde deram o exemplo na literatura francesa.”
João Ribeiro espargiu mais elogios, recordando a estréia da poetisa n´A Semana: “A sua poesia enérgica, vibrante, trazia a veemência de sonoridades estranhas, nunca ouvidas, uma música nova que as cítaras banais do nosso Olimpo nos haviam desacostumado.”
Tanto confete lançado em torno de sua estréia literária parece não ter subido a cabeça da jovem e já consagrada poetisa, então com 24 anos. Ao contrário, cada vez mais incentivada por amigos de peso, dedica-se integralmente à atividade poética, traduzindo para o português, os versos do poeta alemão Heine. Apesar de parnasiana na forma, Francisca Júlia também teve alguma passagem pelo simbolismo, introduzido no Brasil nessa última década do Século XIX.
Em 1899, juntamente com o irmão Júlio César, escreve o Livro da Infância, obra didática logo adotada pelo Governo de São Paulo em escolas do primeiro grau. Seu segundo e último livro de poesias, Esfinges, porém, só apareceria em 1903, novamente prefaciado pelo amigo e admirador João Ribeiro, sendo editado pela firma Bentley Júnior & Cia.
A exemplo de Mármores, seu novo livro foi igualmente aplaudido pela crítica. Aristeu Seixas não poupou elogios: “Nenhuma pena manejada por mão feminina, seja qual for o período que remontemos, jamais esculpiu, em nossa língua, versos que atinjam a perfeição sem par e a beleza estonteante dos concebidos pelo raro gênio da peregrina artista”. Outros poetas famosos não deixaram de manifestar, em crônicas emocionadas, vibrantes elogios à mais nova produção literária de Francisca Júlia, entre eles, Vicente de Carvalho e Coelho Neto. O grande Machado de Assis também elegiou muito o trabalho da já consagrada poetisa.
Em 1909, a poetisa contrai matrimônio com Filadelfo Edmundo Munster, telegrafista da Estrada de Ferro Central do Brasil. A bela cerimônia, que teve Vicente de Carvalho como padrinho, realizou-se na capela de Lajeado, na capital paulista. Nessa ocasião, foi convidada (e gentilmente recusou) a fazer parte da Academia Paulista de Letras, então em vias de ser fundada. A partir desse ano, decide deixar a poesia de lado e se dedicar apenas ao esposo e ao lar.
Alguns anos mais tarde, outra vez em colaboração com o irmão Júlio César, produz seu último trabalho literário, Alma Infantil, editado em 1912 pela Livraria Magalhães. Na segunda década do século, Francisca Júlia já era uma poetisa há muito consagrada. Aos 46 anos, recebe a maior homenagem que lhe prestaram em vida, quando um grupo de admiradores organizou, em 1917, uma sessão literária e ofereceu seu busto à Academia Brasileira de Letras. Era a consagração da talentosa artífice de versos, da “Musa Impassível”, como ficou conhecida.
Acometido de tuberculose, após demorado tratamento, Filadelfo Munster faleceu em 31 de outubro de 1920. A perda do companheiro tão querido foi arrasadora para a sensível poetisa, cuja emoção não pode conter, em nada demonstrando ser a autora daqueles versos frios, impassíveis. Confessou aos amigos que sua vida não tinha mais sentido sem a companhia do marido e deixou claro que “jamais poria o véu de viúva” (seria uma indicação de suicídio?). Tempos antes, ela havia escrito, premonitoriamente, no soneto “Adeus, os seguintes versos:
“Assim, num dia assim, a morrer sem alarde,
chorando eu disse adeus e ele partiu chorando,
para renascer na Terra onde estarei mais tarde...”
Retirou-se para repousar em seu quarto. No dia seguinte, ao abraçar o caixão onde jazia o corpo inerte do esposo, num último e emocionado adeus, Francisca Júlia falecia aos 49 anos.
Seu corpo foi enterrado no Cemitério do Araçá, em São Paulo, ao meio-dia de 2 de novembro. Foi apresentada proposta, pelo deputado estadual Freitas Vale, para se erigir uma mausoléu em memória à poetisa, que seria construído no governo de Washington Luiz. Sobre essa escultura, as palavras de Menotti del Picchia dizem tudo: “A estátua que se ergue hoje no cemitério do Araçá, a Musa Impassível, é um mármore criado pelo cinzel triunfal de Victor Brecheret. Na augusta expressão dos seus olhos, do seu busto ereto, da suas mãos rítmicas, há toda a grandeza e a beleza daquela musa impassível da formidável parnasiana que concebeu e realizou a Danças das Centauras . O estatuário é bem digno da poetisa.”
A despeito da importância incontestável de sua obra, Francisca Júlia ainda não ocupa o lugar que lhe é devido no cenário da poesia brasileira, talvez por “esquecimento” dos estudiosos da literatura brasileira e dos críticos literários em geral.
Nos livros didáticos adotados nas escolas secundárias e nas universidades, pouco ou nada se encontra sobre a poetisa e sua obra. É uma falta de respeito à sua memória e uma dívida a ser resgatada com a literatura de língua portuguesa.
Quanto a sua espiritualidade, entre as primeiras manifestações está a conferência que proferiu no ano de 1908, em Itu, sobre “A Feitiçaria Sob o Ponto de Vista Científico”, quando discorreu sobre Pascal, bem como sobre o Plano Astral e o Corpo Astral, com detalhes referentes à separação do Corpo Físico. Já em “Crepúsculo”, “Natureza” e outros sonetos, ela cita a reencarnação, sugerindo intimidade com a Ciência Espírita e as Filosofias Religiosas da India e do Oriente. Em “Vidas Anteriores”ela diz:
“Fui chela, fui faquir, fui soberon, e ainda hoje
Minha imaginação, no seu vôo altaneiro,
Desprende-se, ala-se e foge,
Para aquelas regiões onde nasci primeiro”.
Devem ser ressaltados em sua produção poética as obras destinadas às crianças, como “Livro da Infância”
POESIAS DE FRANCISCA JULIA
MUSA IMPASSIVEL
Musa! Um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.
Em teus olhos não quero a lágrima; não a quero
Em tua boca suave o idílico descante.
Celebra ora um fantasma angüiforme de Dante
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.
Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;
Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.
(Mármores)
ALMA ANSIOSA
Ela vai onde a leva a bondosa lembrança,
Sempre grata do largo e abençoado caminho;
Ave de arribação, palpita na esperança
De tecer outra vez, na antiga fronde, o ninho.
A alma esquece ao partir, a dor do seu espinho,
Porque parte sonhando, à medida que avança
Depois da luta, a paz, da dúvida, a confiança,
E do ermo e do abandono, o conforto e o carinho
Mas não sabe se ao final da viagem insensata,
Se afinal, para além do sonho, que a arrebata,
Desviando-se da luz, vai para a escuridão;
Sabe apenas que sente, ao voltar, tristeza
De ver-se novamente à vil matéria presa ...
E fecha, sobre si, as portas da prisão.
(Mármores )
CARIDADE
A alma do homem se torna egoísta e má
Porque a impiedade de hoje é a sua escola.
Essa, que no evangelho se acrisola,
Caridade cristã, onde é que está ?
Capazes, hoje em dia, poucos há
Dessa piedade rara, que consola,
Que os olhos fecha para dar a esmola,
Afim de que não veja a quem a dá.
Sêde piedosos. Bem aventurados
Os que fazem o bem de olhos fechados,
Pois a esmola só é útil e eficaz
Só tem justo valor, sem dano ou perda,
se não chega a saber a mão esquerda
O benefício que a direita faz.
(Mármores )
HUMANIDADE REDIMIDA
O Homem era cativo. A Humanidade escrava,
Arrastava da Lei as pesadas correntes;
E o verbo de Jeovah, colérico, ameçava
Entre nuvens de fogo e entre sarças ardentes.
Mísero, condenado a infindável degredo
O Homem, nas aflições e nos transes de dor
Tinha a apertar-lhe a gorja, a golhilha do medo,
Tinha a prender-lhe os pés, os grilhões do terror.
A todos punha a Lei no mais baixo nível;
Todos achavam só, no meio da desgraça,
Para os erros da Fé - a anátema terrível,
Para as faltas da vida - uma perpétua ameaça.
E os profetas de Deus, com sua voz ardente,
Como quem vai lançando as sementes ao chão,
Espalham assim a maldita semente
De que o Homem colheria o envenenado pão.
Mas um dia, o clamor dos profetas calou-se
Do alto a Luz irradiou, em jorros mal contida,
E o Templo do Senhor numa ternura doce
Correu, do alicerce à altiva torre erguida.
Tinha nascido enfim o Verbo feito Exemplo,
A cuja mansa voz de perdão e de dó
Se foi desmoronando o velho e áspero Templo,
De ruínas que era então, fez-se um monte de pó.
Cristo tinha nascido, e com ele a bondade
Nas almas, e no lar do cristão a concórdia;
E desde então abriu-se a toda Humanidade
A era feliz da Paz e da Misericórdia.
(Mármores )
MAHABARATA
Abre esse grande poema onde a imaginativa
De Vyasa, num fragor ecoante de cascata,
Tantas façanhas conta e dessa estrenua e diva
Progênie de Pandú tantas glórias relata !
Ora Kansa, a suprema encarnação de Siva,
Ora os suaves perfis de Krishna e Virata
Perpassam, como heróis, numa onda reversiva
Nas estrófes caudais do grande Mahabarata.
Olha este incêndio e pasma: aspecto belo e triste !
Caminha agora a passo este deserto areoso...
Por cima o céu imenso onde palpitam sóis...
Corre tudo ofegante, e, finalmente assiste
À ascenção de Yudishtira ao Indra luminoso
E à apoteóse final dos últimos heróis.
(Mármores )
RÚSTICA
Da casinha, em que vive, o reboco alvacento
Reflete o ribeirão na água clara e sonora.
Este é o ninho feliz e obscuro em que ela mora;
Além, o seu quintal, este, o seu aposento.
Vem do campo, a correr; e úmida do relento,
Toda ela, fresca do ar, tanto aroma evapora
Que parece trazer consigo, lá de fora,
Na desordem da roupa e do cabelo, o vento...
E senta-se. Compõe as roupas. Olha em torno
Com seus olhos azuis onde a inocência bóia;
Nessa meia penumbra e nesse ambiente morno,
Pegando da costura à luz da clarabóia,
Põe na ponta do dedo em feitio de adorno,
O seu lindo dedal com pretensão de jóia.
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